Hades, Deméter e a representação constitucional

Cronos dividiu o Universo em três partes: ar, mares e mundo subterrâneo. As destinou a cada um de seus filhos assim, Zeus tornou-se deus dos ares, Posseidon deus dos mares e Hades deus do mundo subterrâneo. Hades tinha o poder da invisibilidade, agia sob o pálio do oculto, era hábil no uso do recurso da surpresa. Pensa-se que por causa da falta de luz no mundo subterrâneo, possuía um coração impiedoso, era implacável no julgamento das almas vindas da superfície e cuidava das riquezas minerais do universo. Vivia muito solitário.

De seu palácio escuro, assistia Demeter, deusa da semeadura e da colheita, lançar sementes sobre a terra e afofá-las carinhosamente. O amor que irradiava de seus pés e mãos fazia o chão se encher de plantas ornamentais, alimentícias e outras dedicadas ao conforto e abrigo dos seres humanos. Agradecida, a Terra enchia o ar com perfume das flores e com a beleza de suas cores. As árvores ofereciam sua sombra para o descanso e a relva convidava à contemplação.

HADES, DEMÉTER E A REPRESENTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Demeter não sabia que era observada, a escuridão ocultava Hades e, também, a deusa só tinha olhos para contemplar a beleza de sua filha amada, Core. Sentia grande felicidade em apreciar a desenvoltura com que filha realizava sua incumbência matinal de enfeitar o templo dedicado à mãe. Core fazia isso com as belas flores que, gentilmente, colhia todas as manhãs, cuidava das abelhas e do mel. Enfeitar e adoçar a vida era sua função. Era uma deusa lindíssima, serena, cuja delicadeza dos modos e bondade para com os seres do mundo enchiam a atmosfera de acolhimento e generosidade. A beleza de Core era tão radiante que Vênus a invejava.

Demeter escolhia descansar exatamente no horário em que Core colhia as flores, gostava de observá-la, isto enchia seu coração de alegria, a recuperava do exaustivo trabalho de fertilização, e alimentava seu propósito de gerar abundância.

Sob a invisibilidade que a escuridão lhe proporcionava, Hades também admirava Core sentia-se incontrolavelmente atraído pela delicadeza de seus gestos e por sua estonteante beleza física. Decidiu vencer a distância que os separava para partilhar a vida a seu lado. Core era cheia de luz, cor e perfume, as garras da solidão e da dureza da alma que sufocavam Hades seriam destruídas pelo amor que a bela deusa exalava. Atrelou os cavalos à carruagem e subiu à superfície, a luz do Sol o perturbava, escondeu-se entre rochas à sombra de uma árvore e aguardou o instante certo para agir.

 Ao avistar Core completamente desprevenida, inesperada e abruptamente, tomou-lhe pelo braço e, violentamente, a arrastou para sua carruagem. Com seu cajado, golpeou brutalmente a terra sob seus pés, esta abriu-se numa fenda gigantesca, o movimento de rachadura produziu um barulho ensurdecedor que aterrorizou toda a humanidade. Hades mergulhou nesta imensa abertura e partiu rumo ao mundo subterrâneo arrastando Core consigo, que, apavorada, se debatia e gritava por socorro.

Sua ação foi tão brusca, surpreendente, que Demeter não conseguiu ajudar a filha. Seu ser inteiro foi aprisionado por uma tristeza profunda, pois além de saber que Core havia sido subjugada pelo temido deus do mundo dos mortos, insensível como as pedras e cortante como os metais, sabia que a beleza, a bondade e o encanto da filha não resistiriam à falta de luz, seriam devorados pela escuridão. A ação de Hades interrompera o movimento circular de doação e recebimento, ida e vinda do amor, generosidade e beleza. Era este ciclo diário que habilitava Deméter a prover a fartura na superfície da terra.

A doação de amor realizada por Demeter através da semeadura, se nutria do prazer de assistir à colheita, contemplar o trabalho da filha, de tão valoroso caráter e inigualável dedicação ao embelezamento da vida. Estes momentos eram percebidos, pela deusa, como o merecido fruto nascido da generosidade e do amor distribuídos por ela no plantio. Violado este movimento de ida e vinda, doação e recebimento, o ciclo de amor, Demeter tornou-se incapaz de prover a fartura na superfície, o desespero a impedia de plantar, cultivar e colher. A escassez instalou-se no mundo, com ela a fome, a tristeza, o medo e a revolta. A vida depende da presença real e permanente do amor.

Zeus, irmão de Hades e Demeter[i], interveio, os deuses haviam sido incumbidos pelo Deus Criador, “aquele que é”, de alimentar os seres vivos para que cresçam, não poderiam deixar perecer vida, a obra do Artífice do Universo[ii]. Para cumprir esta missão, o deus do ar lembrou aos irmãos sua obrigação para com o Deus Criador e a conversa resultou em um acordo: Core passaria um quarto do ano com Hades, no mundo subterrâneo, e três quartos na superfície com Deméter.

 Assim, quando Core sobe à superfície, terminado o trimestre subterrâneo, o mundo do ar se enche de flores, perfumes, canto dos pássaros e as abelhas enchem os favos de mel. No trimestre seguinte, os frutos eclodem em abundância, a vida se multiplica, e no trimestre que precede sua volta para Hades, a Terra perde, aos poucos, a doçura e a vivacidade, as folhas amarelam e caem, pois Demeter se entristece com a proximidade do envolvimento da filha pelo negrume das sombras. É por isto que a superfície da Terra passou a viver ciclicamente quatro estações: primavera, verão, outono e inverno.

 Demeter estava certa, a falta de luz transforma Core em Proserpina, criatura bela, mas sombria, sem domínio de sua própria curiosidade, somente a Luz da superfície e a fluidez do ar restauram sua natureza e a transmutam em Core. Entretanto, a essência de Core é o amor, a bondade, o embelezamento e adoçamento da vida, assim, ela aprendeu a amar Hades e com ele teve uma filha, Macária[iii], deusa da boa morte.

Apesar de sua natureza voltada ao favorecimento da vida, da beleza e da doçura, Core não consegui mudar a natureza implacável de Hades, personalidade afeita ao julgamento e à dedicação aos sentimentos pesados, imobilizantes, ferinos que emanam dos objetos subterrâneos e constituem o mundo da morte. Os esposos tinham natureza muito diversa, mas através de Macária, Core acrescentou, à morte, sua essência bondosa. O mais importante é que a beleza e a doçura de Core fizeram brotar no coração de Hades um amor profundo, por isso, acredita-se que um dia, ele será capaz de julgamentos mais ternos, matizados pela bondade de Core, a partir deste instante, o mundo subterrâneo se encherá de Luz.

A diversidade das personalidades de Hades, Demeter e Core, retratam a diversidade inerente à natureza humana, mas a interdependência de suas condutas e o desequilíbrio decorrente da supressão da liberdade de Core, mostram que a intervenção sobre o direito de autodeterminação gera consequências destrutivas que comprometem o bem-estar de todos.

Para evitar que uns imponham, arbitrariamente, suas vontades a outros suprimindo liberdades, no ambiente do Estado, através da violência, surpresa, e outras condutas que caracterizem quebra da confiança no ordenamento jurídico posto, as normas constitucionais fixam limites, prioridades e delimitam espaços mínimos de exercício da autonomia individual. Este espaço não pode ser violentado, nem por particular nem pelo Estado, é zona de segurança individual, de proteção ao direito de livre pensar e fazer juízo próprio, para possibilitar a autorrealização do ser. É direito decorrente da lei natural assecuratória do direito à vida e à todas as belezas inerentes ao existir que somente se desenvolvem através do exercício da liberdade.

A Constituição tem a lei natural como pressuposto, estabelece limites protetivos da autonomia humana, reconhece e tutela a respectiva zona de segurança individual. Parte do entendimento de que não existe democracia sem a percepção de que o ser humano é capaz de fazer suas próprias escolhas, de postar-se diante da realidade com lucidez e atribuir, à sua existência, o sentido necessário para que se movimente em direção à vida. Nas democracias, o indivíduo tem o direito de colher os frutos e arcar com os resultados de seus próprios movimentos. É para isto que foi instituído o Estado de Direito e se pretende que seja, cada dia mais, humano.

O artigo 1º da Constituição da República traz como valor fundamental do Estado a livre iniciativa e o artigo 3º reforça esta tutela estabelecendo a criação de uma sociedade livre, como objetivo de Estado.  É dizer: a tutela da liberdade humana é justa causa da instituição do Estado brasileiro. O pluralismo político, expresso pelo artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, é uma das faces da liberdade a ser assegurada, pelo Estado, ao cidadão.  Protege a livre expressão da personalidade e da percepção individual sobre a realidade política do país.

Pluralismo político é norma instituidora da tolerância no ambiente cívico, impede o constrangimento, o cerceamento de direitos em face da escolha política expressa por cada cidadão. É norma que arrosta o perigo de implantação de vontade política arbitrária, tendente a impor-se sobre os indivíduos, suprimindo-lhes a liberdade de autodeterminação e expressão. O permissivo de exercício de tal vontade mudaria o sistema democrático em totalitário, a liberdade política seria inexistente.

A Constituição diz que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente. Nestas condições, os titulares de cargos eletivos representam o Estado cujo poder tem a função de concretização da vontade popular. Esta vontade é unitária, se expressa através dos objetivos de Estado constitucionalmente estabelecidos. A representação não contempla vontades individuais, separadas, somente a nação, em seu conjunto, tem direito de ser representada[iv]. As vontades individuais que permanecem soberanas não integram a vontade do povo, os objetivos de Estado, por isto, estão fora da legitimação normativa para exercício da representação.

 Os representantes recebem parcela de poder estatal, através da eleição, para decidir sobre o melhor modo de concretização dos objetivos de Estado nos casos concretos, somente têm autorização constitucional para exercício de suas competências funcionais vinculadamente ao compromisso de concretização de uma vontade política organizada, coincidente com a do Estado[v].

No sistema normativo brasileiro, representação é o uso do poder decisório, ínsito às atividades funcionais dos agentes eleitos, orientado para a concretização dos objetivos de Estado definidos no artigo 3º da Constituição brasileira.

No exercício de suas funções, estão vinculados ao propósito de alcançar um resultado que a todos beneficie, que atenda aos objetivos de Estado insertos no artigo 3º. Não têm autorização constitucional para militar em favor de interesses específicos de parte da sociedade como fim em si mesmos. Esta atuação somente encontra amparo constitucional na medida que serve ao vínculo inafastável de promoção do bem de todos.

A partir do instante que os parlamentares assumem os respectivos cargos, toda sua atuação funcional se condiciona ao dever de trabalhar pelo bem comum. São agentes do Estado, a serviço do justo constitucional, em que o único interesse legitimador de sua atuação é a promoção do bem-estar de todos[vi], esta é a finalidade absoluta de existência dos cargos que ocupam

A tutela constitucional da liberdade humana pressupõe o cuidado com o equilíbrio do conjunto de interesses essenciais ao bem-estar, ilustrado através do preâmbulo da Constituição de 88. Os valores expressos no preâmbulo são interdependentes, sintetizam o conteúdo axiológico do justo para o ordenamento jurídico pátrio, que se normatiza a partir do artigo 1º da Constituição. Liberdade dos indivíduos, no ambiente do Estado, é um dos elementos condicionantes do exercício das competências funcionais dos parlamentares.

Os interesses específicos da base eleitoral e partido político dos representantes do povo precisam ser confrontados com seu dever funcional de realização do justo constitucional, com o dever fundamental de proatividade para efetivação dos objetivos e fundamentos do Estado brasileiro. As bandeiras partidárias devem ser recolhidas sempre que avançarem sobre a zona de segurança individual e ameaçarem vitimar a liberdade dos cidadãos, porque esta é uma das maiores ameaças ao bem-estar de todos nos Estados democráticos.

A expressão da imprensa e as manifestações individuais através de redes de internet, também, fazem parte da zona de segurança individual, sob as faces do direito de expressão e de acesso à informação. Se a expressão não afronta concretamente o sistema normativo, não pode ser questionada e nos casos em que a responsabilização seja justa, deve obedecer ao dever de menor causação de dano possível ao indivíduo, sobretudo, no que se refere a ataques ao seu direto ao trabalho e mantença própria, através da palavra. 

O direito à palavra é instrumento de trabalho, também tutelado pela Constituição em seu inciso IV, artigo 1º como valor fundante do Estado brasileiro. É justamente a tutela da zona de segurança individual que protege o cidadão de ser punido pela expressão de pensamento político, pela divulgação de sua forma de percepção da realidade. É o direito de vivenciar, desassombradamente, sua própria cosmovisão, que assegura o direito ser autêntico, é isto que parece ser, finalmente, liberdade.

O avanço do Estado sobre a zona de segurança individual, espaço de liberdade individual mínima, abre uma fenda profunda na base do Estado, traga violentamente a democracia que mergulha, no mundo subterrâneo, levando consigo a esperança de autorrealização do ser humano. Uma falta de piedade irrazoável e se todos agirem sem piedade todos pereceremos[vii].

Sem esperança de um dia contemplar o florescimento da felicidade, que somente brota sobre o campo arado pela liberdade, a vida não tem alimento, a existência humana se muda em deserto. Mas como os deuses do Olimpo receberam do Criador o dever de alimentação da vida criada para que cresça, vamos pedir a Zeus que lembre este compromisso a seus irmãos.

Façamos da liberdade, cravada nos artigos 1º e 3º da Constituição, espada para desatrelar os cavalos de Hades, todas as vezes que vier buscar Core, na superfície, para a temporada subterrânea. Acho que Demeter ficará tão feliz em ter a filha mais tempo por perto que nos brindará com primaveras mais longas, mais cheias de flores, cores, perfumes e cantos de pássaros.

Deus nos ajude!

 

Atualizado aos 05/03/2022.

 

[i] VASQUES, Marciano, O Voo de Pégaso e Outros Mitos Gregos, São Paulo, Volta e Meia, 2012, p.12.

[ii] PLATÃO, Timeu e Crítias ou a Atlântida, São Paulo, Edipro, 2012, p. 63.

[iii] Vide: http://noitescompandora.blogspot.com/2010/05/marco-de-2010-na-mitologia-grega.html.

[iv] COUTINHO, Luis P. Pereira, O Estado como Representação, Lisboa, AAFDL,2019, p.111 e seguintes.

[v] BRUNET, Pierre, La Notion de Representation sous la Revolution Française, Annales Historiques de la Revolution Française, 328/2002, p. 27 e seguintes.

[vi] URBINATI, Nadia, Democrazzia Rapreentativa, Roma, Donzelli Editore, 2010, p.43.

[vii] URBINATI, Nadia, Democrazzia Rapreentativa, Roma, Donzelli Editore, 2010, p.50.

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